quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Bagagem - Adélia Prado


Bagagem, de Adélia Prado
O livro Bagagem, foi a primeira publicação de Adélia Prado, de 1976, por indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.

Em seu poema "Fluência", ela relatou a sensação da estréia: "O meu alívio foi constatar que depois da festa o mundo continuava igual e a perplexidade que gerou Bagagem continuava intacta. Foi ver que a poesia não desertara de mim".

Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. Bagagem chamou a atenção da crítica pelo jeito diferente que a autora tem de dizer as coisas que sente e vê.

Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo freqüentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:

CONFEITO

Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.

É a poesia do cotidiano, não do grandiloqüente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela - dos modernistas a Mário Quintana-, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade.

A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com licença poética", que inicia Bagagem, é exemplar.

Nota: O poema "Com licença poética" parafraseia o "Poema de Sete Faces", de Drummond:

Poema de Sete Faces

Quando nasci,
um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos!
ser “gauche” na vida.
(C. Drummond de Andrade)

Vejamos então, a análise de alguns poemas que fazem parte da obra Bagagem.

1. COM LICENÇA POÉTICA
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Comentários: Os primeiros poemas de Adélia Prado, publicados em Bagagem, procuram exatamente isso: definir a imagem da poeta. Em "Com licença poética", ela assume sua sina de mulher-poeta ao passo em que se apresenta de forma simples e grandiosa ao mesmo tempo; sem deixar de explicitar suas antíteses, ou seja, as contradições do universo feminino, bem como suas diferenças diante do universo masculino.

Já no primeiro verso, é explícita a paródia a Carlos Drummond de Andrade, como já vimos, na qual a poeta deixa, a princípio, claro sua diferenciação. Em vez de um anjo coxo, conforme o conhecido poema drummondiano, trata-se de um anjo esbelto que anuncia o nascimento do eu-lírico de "Com licença poética".

Mais adiante, no terceiro, quarto e quinto versos, a poeta admite que ser mulher-poeta é uma tarefa árdua, visto que, carregar Manuel Bandeira, isto é, o peso de fazer poesia diante da existência de um poeta grandioso como Manuel Bandeira, realmente não seria fácil.
No quinto verso, quando o eu-lírico de "Com licença poética" define a mulher como “esta espécie ainda envergonhada”, podemos deduzir que a mulher é uma “espécie” ainda tímida, com resquícios da criação sob os preceitos católicos citados anteriormente, ou seja, que carrega uma “culpa”, não reconhecendo seu verdadeiro potencial, que lhe permite engendrar homens e fazer poesia.

Em relação ao sexto e ao sétimo verso, percebe-se que a poeta se mostra conformada com sua condição, isto é, aceita os pretextos que, ao longo dos anos, foram dados à mulher (mãe, dona de casa, esposa), pois ela não precisa mentir, é desdobrável, é aquilo que é.

Em seguida, nos próximos versos, a poeta enumera, de forma simples, algumas características da mulher que é, abordando questões sempre tão ligadas ao sexo feminino: medo de não conseguir casar, do parto. Sem rodeios, ela revela sua forma de fazer poesia: escreve o que sente. E isso é tido por ela como uma sina, faz parte de seu destino.

Assim, fica claro que se trata de uma mulher que cumpre a sina há tempos a ela destinada: casar, parir os filhos, cuidar da casa. E escreve. Enfim, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma “nova mulher”, que se define, que se encontra e que tem consciência de, conforme o décimo segundo verso, inaugurar uma linguagem, fundar reinos.
Dessa maneira, ela planta sua semente através da poesia, fundando reinos que irão resultar na literatura feminina amadurecida dos tempos atuais. Reinos infinitos, que se ampliam de acordo com as conquistas da mulher nesta sociedade ainda tão desigual.

Entretanto, o eu-lírico declara que a dor não é amargura; e isso é dito entre parênteses, como um adendo, para que não seja esquecido. Sim, a mulher já sofreu muito, e ainda sofre, porém essa dor não se transformou em amargura, mas em crescimento, em poesia.

Conforme o décimo quarto verso, sua tristeza não tem linhagem, é comum e, assim, identifica-se com o coletivo. Contudo, seu desejo, sua disposição e sua determinação em busca da satisfação são características seculares, próprias da mulher. Para concluir, a poeta retoma a referência a Drummond; no entanto, mais uma vez, o utiliza como sua antítese. Dessa forma, permanece a idéia da superioridade feminina, visto que “ser coxo na vida é maldição pra homem. A mulher é desdobrável”, flexível, isto é, não aceita um destino defeituoso para o qual o homem sempre tentou persuadi-la. Enfim, ela é mulher.

2. GRANDE DESEJO
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

A autora inicia dizendo que é uma mulher comum, do povo, mãe. Desse modo, observa-se a rima provocada pelo contraste dos nomes "Cornélia" e "Adélia", assim como o contraste de significado que esses dois nomes representam. Ela declara-se uma mulher simples por meio da enumeração de atos corriqueiros, banais, tais como fazer comida e bater o osso no prato pra chamar cachorro.

No sexto verso, para que ocorra uma aproximação ainda maior com o coletivo, Adélia diz que “quando dói” grita “ai”, pois não se trata de uma mulher revolucionária, que reprime sua dor em busca de determinado ideal, mas sim uma mulher que constitui sua força com base na sinceridade consigo mesma. Sendo assim, suas sensibilidades não têm governo. Ela se aceita tal como é, com seus momentos de dor e de irracionalidade.

O eu-lírico continua sua apresentação e, no décimo segundo verso, notamos sua religiosidade, outra constante na obra de Adélia Prado, como se a poeta fosse um enviado de Deus que cumpre a sina escrevendo aquilo que sente. Sua poesia está tão ligada à religião que, quando escrever seu livro, irá a uma igreja, talvez para batizá-lo; a uma lápide, a um descampado, talvez para agradecer. Então, nesse instante, a sensibilidade da poeta virá à tona e ela irá chorar, transformando-se numa dama requintada, pois tem um livro com seu nome; porém esquisita, já que é diferente, possui um destino que sabe qual é. Adélia é uma mulher do povo, e sua poesia não está vinculada nem possui fundo político, mesmo numa época em que as feministas estavam em plena atividade com seus discursos de emancipação.
A apresentação pessoal, no poema "Grande desejo", coloca-se com clareza: não se trata de uma mulher excepcional, revolucionária (leia-se, nem no nível ideológico, nem no nível estético), como Cornélia, a mãe dos irmãos Tibério e Caio, que propuseram a primeira lei da reforma agrária em Roma, e que, por isso mesmo foram condenados à morte, sendo valentemente defendidos pela mãe. Identifica-se apenas como Adélia, mas é uma mulher que rima, uma mulher do povo, e mulher de forno e fogão, que cuida de cachorro e grita quando algo lhe dói, mas tem a sensibilidade para as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo, desenha-se requintada e esquisita, isso depois que já tiver composto um livro com seu nome – imagina-se, o próprio livro que o leitor tem naquele momento em mãos. Dessa maneira, vemos que a significação da mulher é uma das características fundamentais da obra de Adélia Prado.

3. A INVENÇÃO DE UM MODO

Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

No poema "A invenção de um modo", o eu-lírico lança os fundamentos da nova estética em gestação, a qual se caracteriza pela busca do equilíbrio entre pólos opostos. Nada de extremismos – ou isto ou aquilo –, mas há o desejo da busca de unidade, de conjugação e intersecção: “entre paciência e fama quero as duas”, ou seja, isto e aquilo.

4. ENREDO PARA UM TEMA
(Análise feita por Angélica Soares, Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFRJ)

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

O poema é uma referência poética ao anti-ecológico silenciamento das mulheres, onde, pelo refazer irônico do autoritarismo da supremacia masculina desvendam-se exigências coercitivas hierarquizantes imputadas, desde sempre, à mulher, em uma sociedade androcêntrica.

Aí, o emprego do discurso direto, que reconstrói na íntegra, a fala do pai, do apaixonado candidato a marido da filha e de D. Cristóvão parece garantir o caráter memorialístico do poema, na medida em que atenua a subjetividade lírica dos versos. O impacto entre a fantasia da filha e a ironia do pai e de D. Cristóvão (representantes máximos, nesse texto, do poder patriarcal) concorre para intensificar o sentido do silêncio feminino diante da lei. O calar-se, como parte da submissão, que se liga às idéias de fragilidade, passividade e dependência da mulher, espelha, nos versos, a oposição binária entre o feminino e o masculino construída. "Enredo para um tema" testemunha, literariamente, essa opressão.

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