quinta-feira, 11 de novembro de 2010

VIDAS SECAS - Questões

 
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
— Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
— Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário — e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinhos e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 99. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 9-11.

Considerando-se o contexto da obra, pode-se afirmar que o fragmento destacado evidencia

(01) a diferença entre dois personagens aparentemente semelhantes — Fabiano e sinha Vitória; aquele, desprovido de sentimentos humanos; esta, racional e sonhadora.
(02) o estado emocional do personagem Fabiano, como reflexo da ação do espaço geográfico inóspito atravessado por ele e sua família.
(04) a comunicação gestual entre Fabiano e sinha Vitória, num clima de tensão, revelando o desnível social e cultural entre eles, reflexo de suas origens.
(08) a alteração do estado psicológico de Fabiano em relação ao filho, fato indicado pelas ações verbais.
(16) as distâncias físicas, naturais, socioculturais e políticas que separam Fabiano de seu espaço geográfico.
(32) a obstinação de Fabiano para atingir o seu objetivo na viagem, apesar do obstáculo imprevisível e intransponível representado por sua família.

O romance, Vidas Secas de Graciliano Ramos, pertence à segunda geração modernista por apresentar a seguinte característica:

a) idealização romântica do sertanejo;
b) predominância da ação sobre a análise psicológica das personagens;
c) visão crítica da realidade brasileira;
d) trata-se de um romance de tese documental;
e) preocupação dos autores em agradar a burguesia.

O diálogo de Fabiano se restringe a poucas falas o que nos leva a pensar que:

a) Fabiano não gosta do filho, por isso dirige-se a ele dessa forma;
b) Fabiano mostra-se embrutecido com tais condições subumanas de vida;
c) Fabiano não gostava de conversar;
d) Fabiano não está revoltado, portanto não precisa manifestar revolta com sua fala;
e) Fabiano mantém-se calado para permitir que outros interlocutores se manifestem.

Podemos perceber que o texto de Graciliano Ramos é polifônico, pois mais de uma voz se manifesta nele. Sendo assim, percebemos que:

a) Fabiano constitui a única voz, uma vez que é o único personagem a pronunciar sua fala fazendo uso do discurso direto;
b) a voz do narrador não está presente nesse texto, pois se trata de um narrador onisciente;
c) a enunciação transmite a voz com tom de crítica social pertencente ao autor Graciliano Ramos;
d) Fabiano não possui voz, uma vez que não sabe fazer uso da linguagem padrão;
e) os infelizes não constituem voz por não exprimirem sentimentos.
Sobre “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, assinale a opção incorreta:
A.    Há pouca importância na ação dos acontecimentos externos, em relação ao que provocam no mundo interior das personagens.
B.    Os personagens oscilam entre reconhecer-se humanos e confundir-se com animais, assolados pela miséria e degradação.
C.    O autor da obra soube dizer, como ninguém, o essencial, sem explicá-lo com excesso de verbalismo, e, por outro lado, com uma densidade poucas vezes atingida em nossa literatura.
D.    Há a presença de um narrador que se converte num “procurador” das personagens, cuja linguagem – sons guturais, incompreensíveis – adivinha e traduz, devolvendo-lhes a dimensão humana e a integrando no contexto universal de que fazem parte.
E.    O protagonista da narrativa é o homem que se fez por si mesmo e se coisificou, se desumanizou pelo ciúme doentio.
Para responder à questão, analise as afirmativas a seguir, referentes aos romances  de Graciliano Ramos:

I. A síntese entre o psicológico e o social, uma característica da obra do escritor, só não se realiza em “Vidas secas”, pois o problema vivido pelo protagonista não está diretamente ligado à natureza do sertão nordestino.
II. Em “Vidas Secas”, romance que tem como cenário uma fazenda, o protagonista Fabiano caracteriza-se pela ambição de dominar não só a terra mas também sua mulher.
III. Em “Vidas secas”, o drama de Fabiano e sua família é intensificado, entre outros recursos, pelo monólogo interior evidenciado no discurso indireto livre.
Pela análise das afirmativas, conclui-se que está/estão correta(s) apenas:

a) I.
b) II.
c) III.
d) I e II.
e) II e III

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. [...]
Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
— Vão bulir com a Baleia?
[...]
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinha Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
[...]
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas.

Sobre o fragmento, contextualizado na obra, é correto afirmar:

(01) O primeiro e o segundo parágrafos contêm argumentos que justificam a decisão a ser tomada em relação a Baleia.
(02) Fabiano demonstra cuidados com Baleia, apesar de ser o seu algoz.
(04) O comportamento de sinha Vitória caracteriza-a como a mãe protetora, zelosa do bem-estar de seus filhos.
(08) O poder de decisão do chefe de família no ambiente rural fica evidente no texto.
(16) Sinha Vitória, ao aceitar passivamente a decisão do marido no que se refere a Baleia, demonstra ser indiferente ao animal e preocupar-se exclusivamente com seus filhos.
(32) A decisão de matar Baleia deixa patente o temperamento agressivo de Fabiano.
(64) A palavra “Mas”, no último parágrafo, antecede uma explicação do conflito entre razão e emoção vivido por sinha Vitória.

Os meninos sumiam-se numa curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição deles, deixar que andassem à vontade. Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito.
E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. [...] Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.
–– O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande –– e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinha Vitória renovou a pergunta –– e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem.
–– Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinhos, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas.

A análise do fragmento, contextualizado no romance Vidas Secas, permite afirmar:

(01) Fabiano considera necessária a imersão das crianças no mundo convencional para apreendê-lo e, assim, libertá-las das condições socioculturais vividas.
(02) Sinha Vitória não se submete às expectativas sociais dominantes, contudo vislumbra um retorno às trivialidades da sua vida social da infância.
(04) O conjunto de personagens da trama simboliza, alegoricamente, os heróicos seres que sonham em reformar a sociedade agrária brasileira à custa da luta armada.
(08) Fabiano e sinha Vitória configuram um tipo de ser que vive reiterando ações, sem nada acrescentar a seu processo de crescimento humano.
(16) Fabiano constitui uma metáfora de ser humano derrotado, que sofre as conseqüências das estruturas vigentes e não consegue impor seus pontos de vista.
(32) A narrativa como um todo retrata um espaço em que a imutabilidade social e o abismo entre povo e governo são incontestáveis.

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